"Geraldo Alckmin e Aécio Neves reclamaram da demora,
os jornais fizeram coro. Michel Temer atendeu na hora e a Reforma da
Previdência chegará ao Congresso para ser debatida nas próximas
semanas", analisa Paulo Moreira Leite, diretor do 247 em Brasília; "A
boa vontade diante de um projeto que prejudica os mais pobres e as
mulheres mostra a força dos grandes interesses financeiros dentro do
golpe. A pressa se explica por uma questão política: um debate sereno
mostra que a Previdência é sustentável e que suas dificuldades não se
encontram no número de beneficiários, mas no excesso absurdo de
sonegação e calotes de empresários".
Quarenta e oito horas depois de a PM baixar o porrete
e jogar bomba de gás em cidadãos do patamar de baixo que protestavam
contra o golpe, o governo Michel Temer afinou a voz para atender aos de
cima e apressar a reforma da Previdência.
Numa cena ilustrativa, na manhã de ontem o Estado de
S. Paulo noticiou, na primeira página, o receio de Aécio Neves e Geraldo
Alckmin de que a reforma – a mais impopular entre tantas ideias nocivas
em curso desde a posse de Temer – fosse debatida depois das eleições
municipais.
O temor era que saísse da pauta política para nunca
mais voltar – o que seria muito bom para os velhinhos e suas famílias,
mas uma péssima notícia para um governo fraco, sustentado pelo 1% da
população em troca da abertura de novas frentes de exploração dos 99%,
especialmente os mais pobres.
No fim do mesmo dia, quando o sr. Fora Temer mal acabara de retornar da China, o Planalto anunciou o encaminhamento da reforma.
Mais do que produzir um efeito prático imediato –
ninguém acha que o Congresso irá debater de verdade um assunto espinhoso
antes das eleições municipais – a decisão ajuda a lembrar uma situação
política.
Deixa claro quem manda e, nessa matéria, quem
obedece. A mesma Casa Civil que defendia, por puro oportunismo
eleitoral, o adiamento da reforma até a véspera tornou-se a primeira a
defender sua divulgação imediata. Pudera. Depois do espetáculo da PM de
domingo, a dependência de Temer em relação a PM de Alckmin tornou-se uma
dessas realidades políticas acima de qualquer dúvida razoável.
Embora as mudanças mais importantes costumem ficar
escondidas, para evitar uma reação imediata da maioria de prejudicados,
algumas novidades da reforma são preocupantes desde já. Em síntese,
prejudicam os mais pobres e as mulheres.
A criação de uma idade mínima para a aposentadoria –
65 anos – representa uma punição a toda pessoa forçada a trabalhar mais
cedo.
Parte do plano consiste em igualar a idade mínima de
aposentadoria para mulheres e homens – o que uma campanha marqueteira
pode anunciar como uma medida modernosa, mas tem um caráter chocante
quando se recorda a realidade da dupla jornada de trabalho feminina no
país.
Como regra geral, pretende-se dificultar o início da
aposentadoria para todos, prevendo a criação de regras novas para quem
ainda não completou 50 anos – e um regime de transição para quem se
encontra acima disso. Conduzido por economistas alinhados com a
perspectiva do Estado mínimo, o argumento central é conhecido. Diz que a
Previdência tornou-se uma instituição insustentável com a evolução
demográfica das populações. Sempre em tom alarmista, ideal para
confundir a discussão, se afirma que as contas, hoje, estão em déficit.
Pior: com o prolongamento da expectativa de vida, fenômeno universal, o
caixa da Previdência tende a se tornar inviável, diz a teoria. Nessa
situação, não há alternativa a não ser arrancar o couro do cidadão
comum. Será mesmo?
Um estudo da Associação Nacional dos Auditores
Fiscais da Receita mostra que em 2014 as receitas do Sistema de
Seguridade Social, responsável pelo caixa da Previdência, atingiram R$
686,1 bilhões. Já as despesas ficaram R$ 632 bilhões. Resultado: um
superávit de R$ R$ 53, 9 bilhões. Cadê o déficit?
Há sim um déficit – que não afeta o total global das
aposentadorias do sistema – na coluna da Previdência Rural. Isso porque a
maioria dos 8,5 milhões trabalhadores rurais não contribui para a
Previdência nem poderia fazê-lo, por uma razão muito simples: poucos tem
registro na carteira de trabalho, num fenômeno que se verifica no mundo
inteiro.
Num esforço para enfrentar essa situação particular,
há mais de 20 anos o Congresso teve a prudência de aprovar 8212/91, que
prevê o pagamento de 2% da receita total da produção agrícola para a
Previdência. Segundo cálculos da Confederação Nacional da Agricultura, a
PIB agrícola chega a R$ 1 trilhão. O setor deveria pagar a soma anual
de R$ 20 bilhões. Pelos desvios e espertezas, a sonegação encobre mais
de 60% dos impostos devidos e os pagamentos ficaram em R$ 6,7 bilhões.
Não é só. Em outro plano, os atrasos acumulados nos
pagamentos devidos a Previdência atingiram, em 2014, a soma recorde de
R$ 307,7 bilhões. É mais que o faturamento de qualquer empresa
brasileira.
Já a capacidade de recuperação do que era devido
ficou em R$ 1 bilhão, ou 0,33% da dívida. “Isso significa que, além de
ineficiente na fiscalização, que permite essa enorme evasão de tributos
da Previdência, o governo federal não recupera praticamente nada”,
afirma o economista Odilon Guedes, que foi presidente do Sindicato da
categoria em São Paulo, autor do artigo ”Porque não há déficit,” de onde
extraí a maioria dos dados deste texto.
Nesse ambiente social de um país em que a
desigualdade e o privilégio atingiram o nível do descalabro e do
escândalo, a Previdência deve ser defendida como um esforço bem sucedido
de defesa da maioria dos brasileiros. Ajuda a distribuir renda e impede
a miséria mais horrenda.
Não é difícil entender por que ela incomoda os senhores de Michel Temer, vamos combinar.
O debate, mais uma vez, envolve interesses muito claros. De um lado, 99% da população. De outro, os 1% que não pagam impostos.
Será difícil escolher?